segunda-feira, janeiro 8


Black is the color of my true love’s hair é uma canção antiga, de origem celta. Uma das coisas mais perfeitas que já tive a alegria de ouvir. E é cantada por diversas vozes ao longo dos tempos, masculinas e femininas, o que dá uma riqueza sem igual à composição, porque é transposta liricamente para os gêneros de acordo com a ocasião, quando um homem canta, fala sobre ela, quando uma mulher, sobre ele.

As versões mais conhecidas (e mais fortes) ficam por conta de mulheres. E QUE mulheres! Se por acaso você já ouviu falar de “Black is the color...” possivelmente foi por causa de Nina Simone, já podia se bastar por aí! Judy Collins canta o original com a letra completa em sua maestria. Tem ainda a absurda e urgente versão do Twilight Singers, projeto do Greg Dulli, vocalista da extinta Afghan Whigs (Seattle 90s). A minha preferida, e a primeira que ouvi na vida, lá nos idos de 1997, é de Nnenna Freelon, jazzie de primeiríssima, de sair sacolejando pelo assoalho.

As letras cantam sobre o amor dedicado, idealizado, despretensioso. Pra interpretá-lo já basta a adoração. Nada melhor do que adorar. Sem nada em troca, pode até, veja, ser nebuloso, obscuro. Black is the color.

*

I write to you in a few little lines
I´ve suffered death ten thousand times


De noite, quando tudo fica quieto, ela acorda.

Não que não estivesse acordada antes, mas é quando o sol se põe que ela consegue respirar. O cheiro do sereno invade a casa que ficou fechada o dia todo, o fogão é ligado pra esquentar alguma coisa, as crianças dormem. Os livros que parecem empoeirados na estante começam a brilhar, as roupas parecem mais exuberantes, o som se espalha no cômodo, maquiagem em cima da cama. Maria vai sair.

As luzes sobre a cabeça, ela gira, gira, gira, roda errante, errando pela pista e não entende nada. Não entende porque não consegue viver sem aquilo, sem “a música batendo na barriga”*, sem o relógio que separa o que vai tocar, sem as pessoas que abraça sem sentido. Ela precisa ver, o estímulo visual traz a temperança.

Um dia esse moço, Júlio, lhe ofereceu bebida, ela nem ligou. Pra variar, estava cansada do emaranhado de faces sem história. Continuou rodando, rodando, atrás de quem lhe parecia acolhedor. Não aconteceu. A firmeza que se tem quando passa o colorido início de romance, apesar de surtir conforto, vai ficando cada vez mais dura, óbvia, vai perdendo substância, mesmo estando cheia de intimidade e afeição.

Júlio continuava lá, de olhinhos brilhantes, dizendo tudo que tinha que ser ouvido. Riso franco, concreto. The purest eyes, and the strongest hands. I love the ground on where he stands. É quando se abre espaço, se fornece a oportunidade e as chances pra alguém, que esse alguém consegue ser o que é. Maria o deixou se mostrar, e se gabar, e acreditar que tudo é possível.

Nem precisou fazer nada, ele a seduzia por dois, e por dois ressurgiu em muitos e deixou todas as memórias pra trás. Maria não conseguia decifrar os códigos, tampouco o ritmo em que aquilo acontecia. Ela se deixou levar. His lips are like some rosey fair.

Os egos imponentes deslizaram, direita, esquerda, e repetidamente. And he and I will be as one.

Ele não era de muitas palavras. Olhava, sentia, constatava. Tudo mais fácil pra ele que pros outros rapazes, que tinham que se esforçar pra adquirir a coragem necessária pra se aproximar de alguém que lhe era valoroso. Os rapazes nessa idéia não sabiam transpor absolutamente nada pra esfera palpável, essa era a realidade.

É bem claro que esse transpor não significava nada muito profundo. Uma vez que na linguagem masculina o que importa é mais uma conquista, e se sentir um pouco menos solitário. Alguém que te dê um sorriso, um afago, um olhar de reciprocidade. Ao menos por alguns minutos ou horas. E após, a necessidade de ser um Casanova orgulhoso se manifesta.

If he on earth no more I did see…

As faces ruborizavam-se conforme o ímpeto do amor se fazia crescente. Ela fechava os olhos e se imaginava verdadeira rapisódia, ele, sentia o cheiro dela e visualizava a própria ninfa arfante de Chipre.

Eis então que remetem a um ninho, e o ninho se pressupõe casto, insigne. Não tem luzes piscando, nem a música ensurdecedora, nem os olhares dos passantes e juízes de coisa nenhuma. E os signos se pressupõem benfazejos, promissores.

Ai de ti se pensares o contrário, mas até agora só enxergo os pródigos buscando a liberdade!

Manifesta a balbúrdia atonal, dos diferentes sons, desencontrados suspiros e gemidos num baile de lamentos sobre o que é a vida. O que é o vingar da existência parca e pôr os pés no chão e respirar com vontade.

O solo que grita é pelo sentir de novo, renascer do torpor que a amargura reservou, assumir a sensação nata do prazer que é dividir.

Maria entreabriu os olhos, enxergou o vazio sereno. Não o vazio do abandono. Mas as possibilidades. A tábula rasa pra escrever o momento seguinte e os conseqüentes. The winter is passed and the leaves are green.

Julio mergulhou nas madeixas negras e perfumadas e desejou sonhar por ali mesmo. Pelo menos por enquanto.

Tho’ a finest face, and the neatest hands…


*I´m alive
Vivo muito vivo
Feel the sound of music
Banging in my belly belly belly

Nine out of ten – Caetano Veloso
*

You Tube

Judy Collins (não é das melhores, mas o vídeo tem a letra, qu não vai se encontrar em outro lugar, na íntegra)

Twilight Singers (aproveite e assista o Conjure Me do Afghan que é uma delícia)

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