quarta-feira, setembro 1

Estou muito feliz porque gostaram do meu conto. Não é nem feliz, estou satisfeita e insuflada de orgulho. Porque as pessoas que eu mais considero as opiniões me agraciaram com lindas palavras, não só aqui nos comentários, mas por e-mail também, com "cartas" que desmembram o meu texto muito melhor do que eu poderia fazer.

Gostaria de tocar num ponto que a maioria identificou, que foi realmente escrito com muita inspiração, mas que talvez seja de difícil acesso pra alguns.


Downtown 4 two, please.

Downtown quer dizer Cidade Baixa, a cidade baixa geralmente é a região mais antiga de uma cidade, onde nasce o comércio e as atividades metropolitanas são CENTRALIZADAS, ou seja, o CENTRO. Até aí tudo bem. A partir de então as cidades crescem e se dividem em diversos bairros, e a economia de mercado se torna míster, e os centros mudam de lugar, os centros comerciais, por assim dizer; e os históricos, por quê não? Se o homem é um animal extremamente inconstante, e adaptável ao meio em que vive, ele tem plenos direitos de reeleger seus locais de maior relevância pra posteridade, de tempos e tempos, naturalmente.

Todavia, a identidade é uma marca intransferível, e onde ela se instala, ela permanece, principalmente quando se trata do amontoado de tradições e características culturais de indivíduos que co-habitam um território.

O "fenômeno" então ocorre, quando um estrangeiro da língua anglo-saxônica resolve mapear um par de capitais brasileiras, distintas e opostas. Pra falar dessa particularidade, que faz parte da minha lista de obsessões, é preciso deixar claro que esse fato curioso só acontece porque as duas cidades "carregam no DNA o mesmo gene": vivem à margem da ebulição cultural das megalópoles, portanto pendem para os bairrismos, regionalismos e nativismos; não cresceram demais, ao ponto que a movimentação artística e intelectual não teve chance de se dispersar; e tampouco se apequenaram diante da localização periférica na geografia do país, visto que possuem a mesma acessibilidade à informação que os grandes centros.

Não irei entrar detalhadamente no âmbito de realizações históricas, porque meu pequeno ensaio viraria uma monografia. Mas vale lembrar (e faço questão de lembrar) que essas cidades serão as eternas importadoras e exportadoras de resistência revolucionária do Brasil. Pra quem não percebeu ainda, estou falando de Porto Alegre (RS) e Salvador (BA).

Essa história começou há anos atrás, com o meu ex-marido, não lembro se a gente estava analisando mapas, ou bêbados, ou discorrendo sobre assuntos surreais (como continua sendo de praxe), ou algo parecido, lembro apenas que ele constatou que os gringos iriam ter problemas de locomoção em POA e em SSA, porque existem duas "downtown" em cada uma, e isso é a mais pura verdade, procure num Atlas de Manhattan, é sério mesmo. Digo isso porque eu duvidei e fui procurar...

Certo, esse é o fato, e desvendá-lo não foi mérito meu, esse impasse de copyright eu já resolvi. Agora, vem a minha parte, que é a de ser transgressora, herege, sem noção, pseudo-mil-coisas, infantil, contra embasamentos fundamentados (isso fora da academia) e vanguardista o suficiente pra criar uma analogia entre as capitais. E, pasme, quando você terminar de ler isso vai concordar que faz sentido pra cacete.

O foco é a Cidade Baixa, denominada como bairro, que é imunda e fedida como o Centro, que já foi o centro, mas agora abriga apenas as idéias, desde as geniais até as mais demagogas e hipócritas, minha mãe já dizia que oportunismo existe em qualquer lugar. A downtown da cultura é o ponto de encontro dos universitários, artistas (ou quase) e formadores de opinião em geral, que passam suas noites a produzir mais cultura no encontro com os amigos, nos shows, nos botecos menores e mais podres (que são os "lugares da moda") e bebendo seu drinque às vezes na calçada mesmo.

São várias as razões que reúnem essa fauna, os mais desprovidos de reais se deslocam pra lá pelo baixo custo da diversão, a classe média acaba freqüentando na esperança de interagir com pessoas de mais conteúdo, ou simplesmente para se exibir e espalhar suas aventuras no subúrbio para os colegas no dia seguinte. A verdade é que esse se torna o reduto mais democrático que há numa cidade, a vantagem inversa de ser uma "mega-província" e de concentrar as atividades noturnas num único espaço, pois em cidades maiores os focos são mais esparsos e as "tribos" tendem a segregar mais facilmente.

Em contraponto, esse bairro também é conhecido pelo baixo índice de segurança, mas a juventude sempre vai fazer questão de viver perigosamente, em qualquer época, portanto não é empecilho para freqüentar a região a possibilidade de perder uma bolsa, o rádio do carro, ou até o próprio carro, esses acontecimentos acabam virando troféus, às vezes mais dolorosos....but...”no pain, no gain”....não é mesmo? Acredito que isso seja muito mais grave em Salvador do que no Sul, por motivos estruturais, mas como mencionado, vou me ater à parte boa.

Encontrar as características afins das capitais não é difícil pra mim, que vivi em uma, e vivo na outra (mais embaixo) agora. Conheci a cena róque de Salvador e continuo acompanhando através de familiares e agregados, e só faço constatar que não se equivale em número, mas em força e perseverança com a cena daqui, com algumas diferenças.

Li certa vez num jornal uma declaração de um cartunista (não lembro o nome, nem adianta tentar) que dizia: "O Rio Grande do Sul é o único estado que ainda acredita em rock and roll e socialismo"; foi neste momento que eu pude compreender o lugar que estava vivendo e a razão de eu gostar tanto dele. Mas claro! Este é o país das utopias! Se bobear, é a própria utopia (mesmo que mascarada), como não gostar daqui? E isso acaba bastando para alguns, que conseguem suprir suas necessidades sem almejar uma abrangência maior da sua produção (artes), isso acaba configurando o que chamamos de autofagia, aqui se faz, aqui se consome, e está tudo certo. E os gaúchos têm o frio, e se protegem sob a estética dele, como diria um cara chamado Vitor Ramil, mas que diferença faz, se só quem vive no Sul e uns poucos cabeções do continente sabem de quem e do quê eu estou falando, "que ele continue só meu".....deu pra entender a lógica? Acho que sim.

E o que resta pros artistas bahianos? A praia, o Axé, o calor escaldante e as bundas. Onde se encontrar e se auto afirmar num lugar oposto à sua natureza? Na Cidade Baixa. Como? Bem, downtown é bacana, mas não vai sustentar alguém (ela precisa ser sustentada), então o negócio é ralar bastante e encontrar alguém que faça seu trabalho ecoar pelo resto do país. Tchanans! Salvador é sufocante pra quem quer produzir e ser reconhecido, pois já existe um status quo muito mais bem delineado que a capital gaúcha, a necessidade de escapar do carnaval é imensurável, melhor dizendo, romper a barreira do "bloco" é a única chance pra quem não quer cair no axé.

O que a nova geração está promovendo, graças a Internet, é um intercâmbio dessas expressões culturais nas chamadas regiões periféricas. Uma descentralização que o eixo São Paulo - Rio está percebendo e buscando participar gradualmente. Hoje nós temos festivais alternativos no Recife, em Belo Horizonte, em Goiânia, em Porto Alegre e em Salvador, só pra citar os principais, e essa movimentação está dando uma nova face para o que antes era marginalizado, está dando credibilidade. O trabalho é árduo, mas o espaço está sendo conquistado e as oportunidades começam a aparecer. É necessário jogar o estigma de "vendido" no lixo, e apoiar quem está conseguindo ser ouvido, lido ou visto, porque senão o processo estanca e nós, sonhadores utópicos vamos ter que aguardar até a nova safra pra torcer novamente.

Não deixa de ser uma nova revolução, e das revoluções, a mais legítima, que é a do pensamento, que por ironia ou não, deve ter começado em downtown, entre um trago e outro.

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