domingo, agosto 29



Trilha Recomendada: The Crow (O Corvo)

À ESPREITA DO QUE NÃO FOI
As palavras secam, rebeldes, na folha ainda respingada de orvalho.

..Every night I fall, every night I call your name...(Burn – The Cure)

Outra noite, Virgínia olhava da janela do quarto, a paisagem obscura que refletia naquela rua do centro, quando as poucas luzes artificiais atingiam os andares mais baixos do prédio. Havia um boteco em frente, no letreiro de neon, lia-se RELENTO, com algumas letras queimadas, sinalizava um grosso “RETO” para os mais desatenciosos. Ela apagou seu último cigarro e resolveu descer pra comprar mais.

Às moscas, para as moscas; um ébrio sentado num canto, outro jogado numa mesa, o velho habituê no balcão com seu charuto que fedia a esterco, e uma rameira que gastava suas misérias com uísque barato.

- Oi Jaime, me vê um Marlboro, e uma dose de cicuta quem sabe...
- Virgínia, Virgínia...tu não tem conserto – resmunga seu confidente de balcão servindo um Bourbon.

Um gole e os pensamentos à tona, a toa ela se entregou à lembrança, e não era sexo, não era casual, muito menos carência, ele era mais. O cara que tirou suas lágrimas do rosto com a língua, e lhe estendeu a mão, e a ajudou a sorrir e a se sentir importante. Que alisou seus cabelos e a abrigou no peito; que a tratou como a mulher que era e no instante seguinte se intimidou com o que havia feito emergir.

..I don´t want to believe, no more...(Golgatha Tenament – Machines of Love and Grace)

A gente ouve todo o tempo as histórias de pessoas que se fodem, porque os perdidos se encontram e correm para viver no mundo que ignoraram por anos, e nem olham pra trás, nem um abraço, um obrigado pela consideração, nem um “eu te amo”! E, Deus, é fácil amar! Contudo existe o outro lado, que Virgínia não conhecia, que é o dos viventes que te puxam da lama, te dão banho, e depois de te limpar, somem, antes mesmo de você conseguir abrir os braços ou esticar a mão para olhar nos olhos e agradecer.

Não só agradecer, mas ela quis dedicar, adorar enquanto saudável, adorar além da loucura, enlouquecer quando preciso, estarrecer nas horas tediosas, ler poemas na cama, e cantar baixinho no ouvido. Sempre que houvesse oportunidade, cantar baixinho no ouvido, melodias ininteligíveis que só fazia sentido pros dois.

..Slipping me away from you... (Burn – The Cure)

A garota tomou mais uma dose e resolveu passar em downtown, ela morava em uma das duas únicas cidades do mundo que possuíam duas downtown, o centro da história dos livros, e o centro da história dos homens, onde a vida era pintada em telas de vanguarda, onde todos tentavam deixar a realidade no canto da carteira, e curtir o alucinógeno maior que é a vida dos noctívagos. Vagando à noite e fingindo ser feliz, o álibi perfeito.

O Glasnost era um bar em downtown freqüentado por gente descolada, o nome já sugestionava o grande distúrbio dos cidadãos dessa cidade, o de acharem-se infinitamente não pertencentes ao território em que estão e, em contraponto, declararem aos quatro cantos que é o melhor lugar pra se viver. Eles não querem se fazer entender, eles só querem ser ouvidos, e na atual conjuntura, isso não é pedir muito.

O local estava cheio, o clima era lo-fi, agradável aos ouvidos de Virg (pronuncia-se vãrgi, era seu apelido), rolando “Color Me Once”, dos Violent Femmes. Country Death Music ?!? – pensava ela – Mas que diabos ?!? Só essa que presta mesmo, só porque figura no melhor filme da minha geração...

“Color me once color me twice
Everything gonna turn out nice
Everlasting arms you gotta keep me from these false alarms”

- Oi Virg! Que bom que vieste!
- É, estou aí..
- Vou ali buscar uma cerveja, a gente se fala!
- ...

E ele sai, Virgínia desce um pouco o olhar e vê que existe uma outra mão entrelaçada a dele, e essa foi a pior cena das desilusões, muito pior do que os beijos que Virg avistou durante a noite, porque mãos dadas geram vínculos que ela sabe como só. E aquilo na verdade foi a única coisa genuína que ela viu nos dois, as mãos dadas.

Foi quando se deu conta que essa terceira só servia de trincheira, foi o campo de força ignóbil e de roupas feias que Glauco arrumou para não ter que enfrentar os olhos pedintes de Virg mais uma vez. E os olhos ficaram tristes, só pra quem conhecia como deviam traduzidos. Para os outros transeuntes era apenas outra mulher que bebia e gostava de dançar sozinha.

E ela cantava assim, baixinho como uma prece, baixinho agradecendo, porque ter a capacidade de sentir o que estava sentindo, às vezes é muito maior do que simplesmente ser correspondido. Porém, sentir com tamanha intensidade também significa não se livrar do sentimento.

Em conseqüência, a Esperança, que é uma velha chata, imortal, e cheia de varizes, que fica sorrindo pra gente e não nos deixa fechar as portas.

“Sometimes it's bright inside my head
Just like the spark in my eyes
And hands are breathing ones are reaching up
Cause that's the time we rise

No they don't have to take you away”
(Time Baby III – Medicine)

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