Cerejeiras em Flor – Quando o amor passa por tua aorta*
Por Dani Hyde
trilha sonora recomendada: Outside – David Bowie – 1995
Noite fria, era o inverno dando sinais de que seria mais rigoroso neste ano. Vivienne estava sentada numa mesa de bar após se perder dos amigos dispersos pela cidade baixa. Apenas ela e um cálice de vinho; o vento e “Strangers when we meet” soando longe na péssima acústica do recinto. O dono do bar era um gênio iluminado, que deixou o Outside voltar ao início e tocar sua peça na íntegra. Vivienne teria então a boa companhia de Nathan Adler, por enquanto...
“It´s happening now...” (Outside)
A garota não havia percebido que alguém a observava desde sua chegada, isso só veio a acontecer quando verteu a última gota de vinho do cálice e se desfazia com tal elixir acalmando a garganta. Ao fim da catarse ela abriu os olhos, outra taça de vinho se aproximando e, atrás da bebida, um rapaz de olhos brilhantes, cabelos longos e negros, pele alva e porte frágil, contudo sua força procedia de algo além dos sentidos.
- Demian, é o meu nome...
- Vivienne...o meu.
- Se não se importa, poderíamos compartilhar do meu jarro.
- De forma alguma! – diz a menina atônita, num misto de surpresa e alívio, porque seu dinheiro já havia acabado e é totalmente compreensível que pessoas sensatas não consigam apreciar e conterem-se com míseros 200 ml de vinho.
Os dois jovens iniciaram algum diálogo, desses prováveis clichês a que todos os grandes acontecimentos da vida precedem. Clichês seletos de certo modo; discorrer sobre as diversas expressões da arte não se ocasiona com quaisquer pessoas ou lugares, afinal, existia uma afinidade essencial entre os vivants, de naturezas notívagas, boêmias, ou mesmo inseguras, quando se exorciza as próprias concepções da arte, todo o resto se esvai deixando a postos o coração e a humanidade, isso quando se é considerado humano.
Ser alguém mais palpável a incomodava, pois passara sua vida tentando se distinguir dos outros e extinguindo suas necessidades mais medíocres, motivada obviamente por uma grande insegurança que permeou cada segundo que respirara até então. A menina de cabelos ruivos da cor da mais completa ferrugem, com sardas por todo o corpo, lábios protuberantes, pernas finas e andar desajeitado, sempre foi motivo de chacota em seu meio social, e a essa altura já se considerava uma aberração. Tinha alguns poucos amigos, dos quais resolvera se perder essa noite, talvez para testar seus limites, talvez para se descobrir, essa noite.
“The voyeur of utter destruction...as beauty” (T.V.O.U.D)
- Os enredos são sempre os mesmos, por isso parei de assisti-los.
-Oh audácia! Desculpas de mulheres! Quando não estão satisfeitas com os atores de aparência duvidosa que a indústria anda selecionando para representar o Conde!
-Filmes de vampiros perderam o glamour, não me sinto à vontade com a visão caricata e banal com a qual os roteiristas denotam os voivodes hoje em dia.
-Para quem já se deleitou com Kinski, Lugosi, Lee e Oldman...sim, Oldman! Já basta! Para mim já basta, agora meu exercício é de análise e discernimento.
-Para mim não bastará, porque já desisti.
-Você desiste de muitas coisas, não é verdade?
-É sim...
-Por quê?
-Porque não vale a pena insistir...
-Mas quando insistimos o gosto é melhor!
-Ou muito mais doloroso.
-Eu vou arriscar...
Demian se debruçou sobre a mesa e roubou o mais ávido dos beijos que Vivienne nunca perdera. O mundo se calou, a conta foi paga, eles saíram a caminhar pelo meio fio, de mãos dadas. Nada mais foi dito naquela noite.
“And the rain sets in...” (I´m Deranged)
Chega uma torrente de chuva, os dois vão para um recuo coberto de uma casa de comércio qualquer. Eles cruzam seus olhares, insuflados de essência interior, e tudo mais que se pode transmitir através de um olhar. Os beijos vêm e vão como dádivas, prêmios para estranhos que precisavam de acalento, uma trégua para as neuroses contidas. Enfim, são beijos, que se expandem como uma patologia mal curada que necessita de mais drogas, mais e mais e uma infinidade delas. Beijos, que perdem seus termos, partem da boca e se alongam nos braços, nas mãos, ao corpo.
Colo. Ventre. Coxas. Pernas. Alma.
As roupas úmidas vão caindo ao chão, a tormenta grita e chora suas lágrimas sobre o solo, sobre a pele. Porém, o calor humano é suficientemente grande para servir de abrigo, de templo, e os ossos estalam ao se unificarem no sexo, nunca tão viril e intenso. Conseqüente de que palavras não explicitam seu conteúdo.
Colo. Ventre. Coxas. Pernas. Alma.
Medo.
Demian ajoelha-se e repete algum ato comum entre mortais, tão desprezado por uns, e outros tantos tomados como sublime. Ele agracia Vivienne; para conhecer seu gosto, para chegar o mais próximo que pode das sensações que se acumulam dentro dela, seu império, sua fraqueza, sua intempérie.
Gozo.
Não, ela não entendia, não cogitava, e o desconhecido amedronta e repele. Ela o rejeita e ensaia sua fuga.
“Bye bye love...this chaos is killing me...” (Hallo Spaceboy)
O rapaz a alcança, e a rende pelas pernas, sente o cheiro à extensão de seu torso de fêmea, e dá início à uma nova série de estocadas. Por um momento, Vivienne se permite, e os dois sucumbem ao comportamento instintivo e primordial dos animais.
Sublevação. Subordinação. Submissão.
Prazer.
Vivienne luta contra seus fantasmas, seus joelhos feridos, suas têmporas roçando na calçada imunda, as intervenções violentas, a repulsa. Parte então a deixar de lado suas expectativas de possuir um amor, pois descobriu que ninguém o possui e todos são possuídos em determinada hora, por mais racional que se tente edificar o ser. Seus pensamentos são interrompidos por uma pausa nas gotas geladas da chuva, o que passa a percorrer o seu corpo é de uma textura peculiar, morna, espessa, e transita por suas costas, nádegas, coxas e desce às pernas. Ela observa; um líquido branco e viscoso que veio de Demian. Alguém podia tê-la avisado, alguém que tornasse tudo mais fácil, mas esse alguém não existia.
Confusão. Culpa.
Um gemido vem seguido de um grito. O primeiro, da satisfação dele, o último, da indignação de Vivienne. Ela tenta sanar aquela dor de alguma forma com urros ininteligíveis, até que sua mão encontra uma garrafa quebrada no chão, segura-a firme pelo que restou do gargalo, e joga todo o peso do seu braço direito contra o pescoço de Demian. Ele ainda estava de olhos fechados.
Morte.
O sangue se espalha rapidamente por todo espaço d’antes dominado por um protótipo de Vênus. Não houve tempo para Vivienne ter uma última reação de seu ex-amor. Seu ato, em vão. Ele não havia sentido. O que lhe sobrou foi sentir também o gosto dele, ela então se prostrou em cima do recente cadáver e pressionou a boca sobre os ferimentos da garganta do único homem que a teve de alguma forma.
Sorveu o suficiente, tal qual um cálice de vinho que não terá repetição. Ergueu-se, nua e ensangüentada, ainda com o gargalo à mão, como uma louca criatura, sem sanidade, sem critérios, perdera tudo que havia acumulado desde seu surgimento. E foi embora, para o nada de onde viera.
*Título interpretado a partir do ensaio motivacional “Quanto Amor Passa Por Tua Aorta?”, de Sergio Buaiz.
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