quarta-feira, março 24

Apresento-lhes o arquiteto de Utopolis...









...Ronaldo Selistre, meu amigo de alma, um dos poucos vampiros vivos (não julguem, depois eu explico) que pude encontrar nessa vida e ainda por cima um dos meus artistas favoritos (sim , porque ele é multi-task como eu)

segue um conto dos seus, para aproveitar o clima que invadiu esse espaço e provavelmente vai reinar pelos próximos dias:



chuva nos olhos

Por Ronaldo Selistre

Conheço a noite, as chaminés uivantes, os átomos do vidro; me volatizei por uma clarabóia agora há pouco. Caio quando quiser naqueles guarda-chuvas, e me deixo esparramar...

Tenho milhões de rostos. Tenho um só sorriso, não te mostrarei. Quero te seguir até em casa, pode fugir, mulher: a chuva me abafa os passos, virei como um déjà vu na tarde úmida. Não me conheces ainda. Me vês.

Não me espera; arrombarei tua porta - silenciosamente... - com o cheiro de cartas antigas. A vida não foi boa comigo. Esta cidade é minha madrasta devassa.

Estou vindo. Preciso de ajuda. Estou gritando por dentro como um zoológico chinês. O outono se foi esta manhã; o céu escureceu como lábios de morto. Trago vinho para os teus seios, dedos para os teus dentes. Minha capa pingando a madrugada sobre ti. Não valho mais que uma voz noturna ao telefone? Não sou mais raro e urgente? Chega mais perto.

Vou queimar tua solidão na fogueira, começarei pelas pernas; quero derreter tua vida de monja operária e derramá-la quente no teu dorso. Te arrancarei sorrisos violentos.

Lá fora não me querem. Vê: tenho marcas aqui, aqui... me temem e não sabem. Agora estão todos embriagados e de mim se esqueceram. Bebi menos; atualmente planejo uma última investida, sóbrio talvez. Hoje, porém, não quero nada tão abstrato. Ainda oferecerei perigo? Em que direção atiro? Rápido!

Em cercas de arame contra o céu penduraram minha fé. À beira da rodovia a noite passa e tu sonhas sozinha numa cama quente enquanto em mim mil fliperamas gritam num sussurro metálico. Lá na esquina, a chuva na galeria ecoa como o som das coisas sonhando. Os uivos de doze gerações ainda assombram os insones.

Vou louvar as veleidades noturnas, os domingos abortados e suas fábricas suburbanas. A solidão úmida dos terrenos baldios; quero janelas empoeiradas, trepadeiras. No porão a lâmpada balançando, sombras elásticas fugindo das paredes. Estou queimando rua afora. Me ajuda.

O ar noturno me descama a pele, a cada espelho há um rosto pior entre os meus dedos. Sabes o que eu quero. Preciso entrar - e entrarei.

Estou farto do mundo. Já não tenho pálpebras que dele me protejam, vou lamber o mundo dos meus olhos. Borro todas as imagens. Quero mais febre. Enfermeira! Estou quente. Quente!

É a velhice, não é? Estou senil, agonizo neste leito - me escondem, eu sei - há bons vinte, trinta anos? Na janela o sol incendeia a chuvarada. É um fogo. Ah, meus poetas. Voltem! Minhas ruas na neblina. Com que pressa tudo se esvai. A tarde esfria...

Minha juventude - os crepúsculos nas vitrines, a música perfumada que escutava do travesseiro ao longe, em qualquer cidade onde estivesse. A dança sempre alheia. O abraço e a ternura que não conheci. A mulher que não me teve. Meus caminhos de silêncio na fumaça dos bairros pobres. Um pouco de arte para um peito ocioso, é assim que caem os jovens, afinal.

Vê, não sabem eles. Fui sempre o trovão enjaulado, o lobo castrado, o filho do verdugo. Enxergava de onde ninguém via. Esperei e esperei. Todos passaram.

Foi do hospital que vi o céu deserto ventando vazio num domingo. Tudo estava morrendo. Avistei dali aquela juventude que me entregaram às pressas, toda mal-aparada nas extremidades. A monstruosa luxúria arfando sobre o meu estômago. Que correntes colossais arrastamos, todos nós. Que esmola é a esperança. Que miséria.

O graal sobre os meus ombros é morada de aranhas, todos os meus empreendimentos faliram sem estrondo e sem surpresa. Perdi minha fortuna enquanto flutuava no espaço, catalogando musica etérea, batendo relatórios para a Velha Terra. Agora volto e: Que lugar é este? Sou mendigo por dentro. Finalmente me vejo louco. Não perco mais nada.


Saí a rua, o verão me sufocava, queria respirar; vi crianças. Brincavam, e a morte brincava nelas.

Um tilintar de carroça me chama o olhar, e reconheço meu pai nos olhos do animal, reencarnado em sofrimento; e me vem assim a memória fresca duma vez - uma vez; dois, três séculos atrás... dividíamos um pão roubado atrás dum poço de barro. Não vou te deixar, meu pai!, jurei, promessa de amigo, vendo-o matar a fome. Depois me vejo caminhando sem mais ninguém, meu rosto molhado gelando no vento da manhã azul-escura.

Eia!, grita o carroceiro. Lhe bate. Eia! Meu choro vai cair, eu sei. O que estou fazendo? Estou louco! Vou enfim poder morrer de loucura honesta, morrer só, de loucura e miséria, como morreram meus heróis. Mas, olha aqui: nem por isso suplicar. Suplicar, nunca.


Ah, estou submergindo. Droga, estou secando.

Tenho que correr. Correr. Pra lá, bem pra lá. Vê, estão todos sãos! A rua inteira está sã! Vejo como olham das cercas. E dos muros. Das janelas, e mais fundo, e das mesas, e das xícaras. Dos olhos. Das vidas. E mais fundo...

Todo o território urbano fede a uma sanidade brutal e contida, quero fugir deste viveiro inchado cujo ar me estrangula num cobertor de odores humanos. Me encontrarás um dia longe daqui, sonâmbulo pelo asfalto ao sol do meio-dia, murmurando pedaços de histórias da cidade que abandonei. Arrastando uma vida fantasma amarrada aos cabelos.

E vais dizer Volta! Vem comigo! Tens febre, estás quase morto. E direi Me deixa, estou quase vivo.


O inverno chegou hoje. Eu o senti. Veio uivando pelos morros, assustando as pradarias. Noite passada sonhei com um bando de pássaros brancos deixando um charco no interior. E acordei e estive sentado, com frio, pensando que minha vida caminha para uma penosa tragédia que deve vir em breve. Esta cidade de cimento, este mundo. Vou deixá-los. Hoje queimei meu plano de carreira, vou enfim me assumir desertor. Algo neste momento me puxa forçosamente para baixo, para o sono, para o barro gelado - e tenho considerado surpreendê-lo com aceitação serena.

Mas antes, mulher, eu vou entrar.


Não viste minha sombra roçando os paredões. Apareço lentamente, num instante vermelho, faiscando entre as cortinas. Tenho chuva nos olhos. E uma fome que não me deixa dormir.