segunda-feira, junho 18

Deixa eu contar uma história sobre teatro... - Parte I

Uns 13 anos, acabo de chegar da minha estadia de 1 ano em Salvador. Toda tropicalista e fresquinha, apesar de manter os cabelos vermelhos, tingidos de papel crepom. Volto pro Maria Ward, a melhor escola que eu já estudei, com os melhores amigos que eu já tive e os professores que formaram meu caráter.

Se você é uma pessoa que acha que estudar é um saco, pode parar de ler por aqui. Os dias mais divertidos da minha infância e adolescência foram embalados pela rotina escolar, meu universo original, senão até hoje. O professor César, História; culpado pela minha escolha profissional, me dizia que ser lixeiro era mais negócio. Ele falava New Deal e BIRD de um jeito muito engraçado. Eu não lembro direito o que é New Deal, coisa lá da América.

Teve uma gincana que cada professor liderava uma turma e criava uma apresentação com determinada música, a coordenadora da minha sala (oitava série) escolheu País Tropical, do Jorge Ben, fui meio contrariada, ok. O César entra com os pequenos da quinta série, todos vestidos de branco, segurando rosas vermelhas, ao som de Sociedade Alternativa. Poucas vezes eu fiquei tão orgulhosa.

Oitava série. Marcos, de Literatura. Entra com um rádio na sala, ia ser aula do modernismo, acho. Liga o rádio, Outras Palavras, do Caetano. Marcos começa a desconstruir aquela música palavra por palavra, e explica todas as nuances e sentido real das “outras palavras”. Eu nunca mais ouviria Caetano da mesma forma. Mas odeio poesia concreta.

O professor de inglês, que eu não lembro o nome. As aulas de inglês no colégio eram mera formalidade, eu tirava 10 em todas as provas. O inglês no colégio é muito atrasado, eles deveriam incluir Beatles no currículo. O professor. Ele só falava em inglês, a aula era na sexta e ele já entrava gritando “Thanx God, It´s Friday!!”, quase um personagem da ACME, ele fazia muitas caretas. O mais legal era pedir pra ele falar o inglês britânico, ele passava por mim e largava um par de frases no meu ouvido. Eu sorria. Não, ele era feio, não pensa besteira.

O René, de Biologia, passava a manhã toda com o mesmo cigarro. Ele acendia no trajeto entre uma sala e outra, apagava na ponta do pé, e guardava no bolso, até o próximo intervalo. Eu lembro dele TODOS os dias, quando vou ao banheiro. Ele dizia que “é ridículo as pessoas lavarem as mãos depois de usar o toalete, porque nunca lavam antes, e primeiramente, deveriam se preocupar com sua própria saúde”. Eu continuo não lavando antes, e às vezes lavo depois.

Teve um dia que o Jeferson, aquele estranhão que dava Educação Artística pros pequenos, passou nas salas convidando os alunos para uma oficina de teatro. Disse “pra quem for, que usasse uma roupa confortável”. Mais nada. Eu achei bem massa. Fui.

Era uma miríade de alunos, da quinta à oitava série. Eu como representante dos veteranos, achei um inferno. Era no salão da escola, que tinha um palco massa, e era enorme. O Jéferson botou uma música dessas de barulho de mato e passarinhos e mandou a galera rastejar pelo chão, como, duh, animais rastejantes.

- Puta que pariu! – eu pensei. Mas fui. Assim como eu, várias pessoas até falaram alto o “puta que pariu”, e começaram a ir embora. Eu comecei a gostar. Assim que sobraram umas 30 pessoas na sala, o Jeferson mandou o povo parar com aquela besteira, e começamos a conversar.

Tinha horários rígidos, a montagem de uma peça pra participar de um festival em 3 meses, sessões de “tortura” com os mais tímidos, cobrança de verdade, algo que não acontecia na minha vida, além do autoritarismo da minha mãe. Ok, eu sou sonhadora, crio zilhões de filmes diários na minha cabeça, vai ser divertido.

Segunda aula, descobrir o potencial de voz dos remanescentes, agora uns 25. O Jéferson pega uma bíblia e manda abrir no Gênese. As pessoas lêem quase chorando, chega a minha vez, é a minha voz de transexual ecoando no salão, falando sobre as maravilhas que deus criou, horrível, mas era a mais alta. Ganhei o papel principal.

Agora deixa eu explicar, o Maria Ward é um colégio de freiras, havia uma espécie de ditadura, entende. 80% das nossas apresentações tinham algo religioso no meio, mas eu não me importava, contanto que tivesse música e as minhas amigas Dafne e Renata soltando pelo menos uma gargalhada de pomba gira por ensaio. Eu tenho obsessão por pessoas que conseguem provocar um riso que não existe, acho dificílimo, e às vezes até o meu riso normal parece o do Mutley, enfim, continuemos.

Lemos o Gênese. A peça era sobre a criação do mundo. Eu era um tipo de deus-narrador, algo que colaborou bastante pra minha megalomania. Tenho vagas lembranças dessa peça, lembro que amava a música da criação do homem, e ainda hoje quando converso com a Renata (de cem em cem anos), falamos sobre ela e choramos. Era algo assim:

“O quanto tiveres que andar
Quanto caminhar
Para perceber
Que na mesma direção
A mesma voz
Nós fez irmãos....”

Tinha também uma cena em que a gente reproduzia a Pietá de Michelangelo, eu a Nossa Senhora, e uma outra colega, Jesus Cristo. Ela era negra. Eu achava realmente contestador ter uma negra como Jesus Cristo no meu colo. Era uma cena bonita.

Todos, sem exceção, odiavam a cena final. Íamos todos para o palco e ficávamos repetindo Louvado seja meu senhor umas 150 vezes, em acordes diferentes e batendo palminhas. Que ódio dessa cena. As irmãs (freiras) aplaudiram em todas apresentações.

Participamos do primeiro festival, tinha até camarim, a gente se acostumou rápido com essa coisa de se vestir um na frente do outro. Em 22 pessoas, só tinham 2 homens, e 1 deles mais tarde se descobriu gay. Depois eu falo mais dele.

Então teve aquela menininha que entrou no grupo, eu não me lembro o nome, era uma moreninha, havaiana, da quinta série. Ela era muito tímida, então o Jeferson pediu. A “tortura” consistia na imobilização de uma pessoa, não no sentido de amarrar, mas no sentido que ela deveria ficar parada em pé, de olhos abertos e sem se mexer, enquanto todos os outros a tocassem, a encarassem, e fizesse tudo o que estivesse a mão pra transtornar a “vítima”. Acho que todo mundo passou por isso, mas a moreninha, chorava desesperada, até sair correndo do salão. Na aula seguinte, ela voltou, e foi recebida com salva de palmas.

Porra! Que gente escrota que nós éramos! Espero que isso não aconteça mais em aulas de teatro.
A minha memória começa a falhar, tem um elo perdido aqui.

Fazemos as esquetes de protesto pela América Latina. Não lembro se tinha nome, eram cenas desconexas, que davam estatísticas de pobreza e misturava umas poesias, mas o mais importante eram as músicas, e a plástica da cena. Começava com uma Promessas de Sol* desesperada, todos nós dentro de uma “caixa” encapada com jornal ou papéis diversos, e conforme a música evoluía ia saindo um braço, uma perna, uma cabeça sofredora, era bem divertido ficar ali embaixo esperando a sua vez. Então começava El Condor Pasa, versão de Violeta Parra, se não me engano, as pessoas que já saíram todas da caixa andam pelo palco, eu acho que tinha umas máscaras, aquelas venezianas, com narizões..eu não lembro o que acontecia nessa hora. Depois toca uma peça barroca, e eu faço um personagem saído diretamente da novela “Que Rei Sou Eu?” , dando um texto sobre Brasil como se falasse sobre uma corte. E no final rolava Guantamera, e todo mundo cantava chorando (putz, a gente chorava pra tudo...) e tinha mais algo que me escapa. Perceba que eu só me lembro das músicas no fim das contas.

Fazemos outras esquetes de personagens-limite, uma é empregada miserável, outra é negra vítima de preconceito, tinha mais uns dois, eu era uma aidética terminal. Usava uma camisola muito linda da minha mãe, que eu enchi de esmalte vermelho e fodi pra sempre, e umas faixas pelo corpo, com umas feridas pintadas. EEEWW! Não sei uma linha do texto, aliás, sim, tinha uma hora que eu saía da casinha e ficava balbuciando “vida”, por algum motivo. Eu lembro que geral aplaudia muito e ficava emocionado, devia ser bom. Ah, lembrei! A entrada no palco dessa personagem era a “Metade” do Oswaldo Montenegro, facinho morrer depois disso. Fora que os meus professores são da escola que “não há teatro brasileiro sem Oswaldo” ou ainda “não há música no teatro brasileiro sem Oswaldo”. Acho que eu também seria dessa escola até hoje, se continuasse.

Como assim “meus”, se só falei do Jeff? Bem, tinha a Cidinha também, que era nossa tocadora de violão oficial, e ajudava nas trilhas. Fazia parte dos projetos artísticos da escola também. E o Marcos, aquele de literatura, nos dava aulas teóricas de história do teatro. Era bom, mas devido a desconstração dessas aulas, eu só tenho 2 parágrafos anotados, em meses.

Dá mais um fast foward aí, e vamos pra superprodução. A esta altura a gente já conhecia o Catarse, o grupo profissional do Jeff, e assistíamos às montagens deles nos sentindo um lixo, óbvio. Tinha a peça sobre o Golpe Militar, que era absolutamente foda e começava com Ponta de Areia, não me lembro o nome, será que era 1964 mesmo? Enfim, e tinha a ZUMBI, que era sobre, ahn, o Zumbi dos Palmares. Eu passava mal com eles, acho que a maioria dali deve ser ator até hoje, eles eram bons demais, e tinham 18, 19 anos.

Então, depois dos dois grupos se tornarem uma espécie de família, decidimos fazer uma peça mais complexa. O Jeff chegou com Capitães de Areia, foi unanimidade nacional. Eu sou muito baiana, benzadeus.

Continua...

2 comentários:

Bruno Pommer disse...

Deu vontade de voltar pra escola, estudar lá. Fora uma mulher no segundo grau que exigia que a gente pensasse antes de escrever, praticamente só tive boçais como professores.
Agora, a grande dúvida: bicho-grilo ou pós-modernista pós-intelectual??

Anônimo disse...

ACABEI DE LER E ME PEGUEI CHORANDO COM OS COMENTÁRIOS DO TEATRO...

RISADAS, AINDA TENHO A MIL.... HAHAHAHAHA E DA MESMA MANEIRA QUE VOCÊ UM DIA JÁ OUVIU. A GUARDAREI NA CAIXINHA PARA UM DIA VOCÊ A OUVIR NOVAMENTE.

VC CONTINUA FANTÁSTICA.... SAUDADES DE VC MINHA QUERIDA QUE SEMPRE TRAREI NO CORAÇÃO.

BEIJOS