quinta-feira, outubro 11

Evocando o pai.

Às vezes a gente tem que lembrar quem somos. Todos nós aqui de dentro.

Trecho do médico, monstro e gênio, meu amigo e confidente, Robbie Louie:

"Foi, pois, a exigência das minhas aspirações e não o meu particular desregramento que me fez ser tal como era e o que separou no meu íntimo, com um fosso mais profundo que na maioria dos homens, essas duas regiões do bem e do mal em que se divide a natureza humana. Obrigado pelas circunstâncias, reflectia intensa e repetidamente nessa dura lei da vida que é a própria essência de toda a religião e que é uma das fontes mais abundantes de dor. Embora a minha dualidade fosse tão profunda, não me sentia um hipócrita, porque os meus dois rostos eram totalmente verdadeiros. Eu era o mesmo quando, abandonando toda a moderação, me atirava para os braços da desonra, ou quando, trabalhando à luz do dia, promovia a ciência para aliviar a dor e o sofrimento.
(...)
Outros seguirão o meu exemplo, outros me superarão e atrevo-me a profetizar que no fim o
homem será reconhecido como um ser habitado por seres múltiplos, incongruentes e autónomos.

(...)
As duas naturezas que lutavam na minha consciência eram minhas, porque eu era em essência ambas. Desde o início, ainda antes das minhas descobertas científicas começarem a sugerir-me a possibilidade de tal milagre, dediquei-me a pensar placidamente, como se se tratasse de um sonho querido, na possibilidade de separar esses dois elementos. Se cada um deles, dizia eu, pudesse habitar em identidades diferentes, a vida libertar-se-ia do que hoje se me afigura insuportável; o injusto poderia seguir o seu caminho, despojado das aspirações e do remorso do seu irmão gémeo, mais recto; e o justo avançaria com segurança e firmeza pela sua senda ascendente, realizando as boas obras nas quais encontra prazer e sem se expor às desgraças e à penitência provocadas por esse espírito perverso e desconhecido. Esta era a maldição da humanidade: o facto desses dois ramos incongruentes estarem unidos com tanta força, que – nas agonizantes entranhas da consciência - estes gémeos opostos lutavam continuamente entre si. Então, como dissociá-los? Estava tão absorto nas minhas reflexões quando, como disse, da mesa do laboratório surgiu um débil raio de luz que começou a iluminar o horizonte. Comecei a perceber, cada vez mais profundamente como jamais poderia imaginar, a temerosa imaterialidade, a transparente inconsistência deste corpo aparentemente tão sólido em que estamos aprisionados. Dei-me conta de que certos elementos possuíam a capacidade de alterar e arrancar essa vestimenta carnal, do mesmo modo que qualquer sopro de vento agita o toldo de uma loja. Não entrarei em profundidade no aspecto científico da minha confissão. Primeiro, porque acabei por perceber que o homem está ligado indissoluvelmente ao seu destino e à carga da sua própria vida e quando procura libertar-se desse peso, regressa novamente a ele com uma pressão maior e mais terrível. Segundo, porque, aí, como o evidenciará o meu relato, as minhas descobertas eram incompletas. Bastará dizer que não só fui capaz de separar o meu corpo material da emanação de certos poderes que formam o meu espírito como também logrei elaborar uma droga graças à qual a supremacia desses poderes foi destronada e suplantei o meu aspecto com uma segunda aparência, não menos natural para mim, já que era a expressão dos mais baixos componentes da minha alma e tinha em si a sua marca".

3 comentários:

m. disse...

"Embora a minha dualidade fosse tão profunda, não me sentia um hipócrita, porque os meus dois rostos eram totalmente verdadeiros."


eu achei isso esses dias num caderninho de quando eu era mais piá ainda. e é perfeito. muito muito muito. apresenta o robert pro demian, eles vão se dar bem. tenho certeza.

Anônimo disse...

precisava deixar uma mensagem para algu�m que mudou meu gosto sonoro: por um acaso, feliz acaso, descobri Bauhaus no seu blog. Tamb�m, pelo mesmo feliz acaso, descobri seu blog. Hoje, assim como todos estes outros dias, gasto minhas horas perdendo-me em palavras que invento significados ao som de Bauhaus seguido de Sonic Youth (curtindo a m�sica sem vontade de morrer ou coisa parecida). lhe agrade�o pelo destino... um dia desses, tomo coragem e te adiciono no orkut. enquanto isso... at� l�!!!

Dani Hyde disse...

que bom, Leonardo!

Bauhaus é uma ótima banda, e isso vai muito além de goticismos e gente depressiva. Peter Murphy é um dos maiores poetas do pós punk.

curta bastante aí, e dê um alô sempre que quiser.