segunda-feira, abril 9

- Dorian!


- Não fale!


(...)


- Você me disse, no mês passado, que nunca iria expô-lo. Por que mudou de idéia? Vocês, que se dedicam a ser consistentes, possuem, na verdade, tantos estados de espírito quanto uma pessoa qualquer. A única diferença é que os estados de espírito de vocês quase não têm significados. É impossível que você tenha se esquecido de que afirmou, de modo solene, que nada no mundo o induziria a enviar o quadro a qualquer exposição.


(...)


- Basil, todos nós temos um segredo. Conte-me o seu, e eu contarei o meu. Por que motivo você se recusava a expor meu retrato?


O pintor estremeceu, mortificado.


(...)


- Vamos nos sentar, Dorian. Vamos nos sentar. E responda-me apenas uma pergunta. Você notou alguma coisa estranha no quadro? Alguma coisa com que você não tinha atinado, no início, mas que, de repente, se revelou a você?


- Basil!


Com as mãos trêmulas, o jovem agarrou os braços da poltrona. Olhava-o com olhos selvagens, arregalados.


- Notou, não foi? Não diga nada. Espere até ouvir o que eu tenho a dizer. Dorian, desde o primeiro momento em que o conheci, sua personalidade teve, sobre mim, uma influência extraordinária. Fiquei dominado, alma, cérebro e energia, por você. Pra mim, você era a encarnação visível daquele ideal oculto cuja lembrança nos assedia, a nós artistas, como um sonho exótico. Idolatrei você. Senti ciúmes das pessoas com quem você falava. Queria tê-lo todo pra mim. Sentia-me feliz apenas quando estava com você. E nas vezes que esteve longe de mim, ainda assim estava presente em minha arte... Claro, jamais permiti que você o percebesse. Teria sido impossível, você não teria compreendido. Eu mesmo mal conseguia compreender. O que eu sabia, apenas, é que me havia deparado, frente a frente, com a perfeição, e que o mundo se havia transformado, aos meus olhos, num mundo maravilhoso. Maravilhoso demais, talvez, pois, numa adoração assim tão louca, ronda o perigo, o perigo de perdê-la, nada inferior ao perigo de mantê-la...


As semanas se passavam e, cada vez mais, deixei-me absorver por você. Veio, em seguida, uma nova evolução. Eu o pintara como Páris, numa armadura elegante, como Adônis, num casaco de caçador, com uma lança lustrosa pra caçar javalis. Coroado em flores de loto, fortes, você se sentou à proa do barco de Adriano, de onde contemplava todo o verde, túrbido, Nilo. Você se debruçou no lago plácido de algum bosque grego e viu, na prata silenciosa da água, a maravilha... o próprio rosto. E fora tudo o que deve ser a arte: inconsciente, ideal e remota. Certo dia – num dia fatal, como costumo pensar algumas vezes -, determinei-me a pintar um retrato maravilhoso de você, tal como é hoje, não na indumentária de épocas mortas, mas com seu próprio traje, em seu próprio tempo. Se foi o realismo do método ou a simples maravilha de sua personalidade, a mim apresentada, de forma direta, sem bruma, sem véu, não sei dizer. Sei apenas que trabalhei muito, todo floco, toda película de cor parecia, a mim, revelar meu segredo. Senti medo de que os outros soubessem de minha idolatria. Senti, Dorian, que havia dito muita coisa, que havia colocado, no retrato, muito de mim mesmo. Foi então que resolvi não permitir jamais que o quadro fosse exposto. Você se aborreceu um pouco, mas, na ocasião, você não percebia o que tudo aquilo significava pra mim. Contei a Harry, e ele riu de mim. Mas não liguei. Quando terminei a pintura, e me sentei a sós com ela, senti que tinha razão... Bem, uns dias depois, a coisa foi embora do ateliê, e logo que me livrei do fascínio intolerável daquela presença, a mim me pareceu que eu fora um tolo em imaginar ter visto, nela, algo além de uma extrema beleza, e do fato de que eu sei pintar. Mesmo agora, inevitável sentir o erro do pensar que a paixão sentida na criação se evidencie na obra criada. A arte é sempre mais abstrata do que a imaginamos. A forma e a cor nos dizem da forma e da cor, e só. A mim me parece, com freqüência, que a arte, muito mais do que revelar o artista, o esconde de modo ainda mais categórico. Assim, quando recebi o convite de Paris, determinei-me a fazer, de seu retrato, o assunto principal de minha exposição. Jamais me ocorreu que você recusasse, mas vejo que você tem razão. O quadro não pode ser mostrado. Não fique zangado comigo, Dorian, pelo que eu falei. Como eu disse a Harry, um dia desses, você foi feito pra ser adorado.


(...)


Quando Hallward saiu, Dorian Gray sorriu sozinho. Pobre Basil! Quase nada sabia do verdadeiro motivo! E fora estranho que ele, em vez de ter sido forçado a revelar seu segredo, conseguira, quase por acaso, arrancar o segredo do amigo!

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