quarta-feira, janeiro 24

Love Lane

Em ritmos compassados escutavam-se os passos daquela ruazinha. Passavam os bardos voltando pra casa, os ímpios procurando cortar caminho pra encontrar outro bar aberto, as meninas chegavam de táxi e pediam pro motorista esperar até que elas ultrapassassem a porta de seus prédios em segurança. Era uma rua estreita, de paralelepípedos que cruzava uma outra principal e finalizava num Beco, com o edifício mais antigo da cidade. Onde os moradores nostálgicos faziam questão de criarem abaixo assinados e brigar com as seguradoras pra nenhuma agência dessas grandes, de construções, acabar com o sopro de história de toda uma era.

Não havia ressarcimento que compensasse o abandono daquela estrutura para que levantassem um condomínio de luxo, desse com 5 quartos, e que em cada quarto mal cabe uma cama. Comum em Porto Alegre, esse era mais um prédio construído por imigrantes com um nome egocêntrico. A diferença é que, ao invés de italianos, alemães e poloneses, o lugar era abarrotado de desertores da Paris enlouquecida de 1845. A pândega que se revezava em reis, imperadores e presidentes por quase um século instaurou uma mentalidade de que a vida poderia ser melhor fora de lá. Mal sabiam eles que chegaram no exato momento em que Porto Alegre fervilhava de ideais visionários, revoltas estaduais e contra um governo grande demais pra dar justa conta de todo seu território. Mas dado as circunstâncias, ainda parecia um recanto menos hostil.

Verushka morava no Saint Ettiene há 4 anos e já simpatizava com os velhinhos que eram contrários a idéia de perder sua morada. Desde que chegou, sempre se encontrou acolhida, não fosse pelos amigos que conheceu ainda em Paris, através da internet, era pelos pequenos detalhes. Uma manhã de sol em que se ouvia da lavanderia comungada tons de Wagner, Berlioz, e os mais contemporâneos como Edith Piaf e Gainsbourg. Sempre em casa, era sempre um conforto estender as roupas lavadas balançando como um pêndulo enquanto ouvia Non Je Ne Regrett.

Não tinha grandes ambições, além de sumir do lugar que morava. Dedicava-se então, à tradução de textos e livros do francês pro português. Sem surpresas, o que lhe rendia o sustento eram as pesquisas acadêmicas, hoje em dia, ninguém quer saber de Victor Hugo, Maupassant, Dumas, Balzac, Flaubert, Valéry, Baudelaire ou Artaud. O negócio é simplesmente copiar e colar o Pacto Social de Rosseau pra crianças da sétima série até a universidade.

Aparte o cerne da subsistência, Verushka era uma mulher noturna. Dormia até meio-dia, realizava suas tarefas, e ao crepúsculo procurava alguma outra atividade no intuito de afirmar que o ser humano era de alguma forma um ser social. Tomava um banho perfumado, se vestia com as melhores roupas e abandonava sua Love Lane para adentrar em algum estabelecimento decente.

O “decente”, pra ela, consistia em boa música e pessoas agradáveis, nada mais. Essa noite bastava um encontro na casa de amigos, e para lá deslocou-se. A casa de Juan era de um colorido sem igual. Ele trazia da família esses caprichos multicores, cheio de tapeçarias latinas, o som no meio da sala como personagem principal, várias almofadas espalhadas pela sala, uma diversidade de fotos da aclamada cultura pop pelas paredes do apartamento. Sentia-se protegida quando estava com Juan. Seu companheiro desde que chegou, ele a fazia rir quando precisava, e ajudava-a a continuar acreditando que uma vida solitária não poderia se bastar por somente.

Rostos familiares e desconhecidos se misturavam na sala de sinuca. Jovens deveriam sempre jogar sinuca. É de um prazer inigualável competir sem competir entre os iguais, porque o que sempre está em jogo é o que se fala durante o jogo e não o jogo em si. Mas ela mesma não parecia cultivar esse hábito, o que esperar dos outros? Divertido era errar enfadonhamente, e olhar pro parceiro e pros adversários e rir, e prosseguir com o assunto.

O rádio chamou a atenção, por já ser alta madrugada e tocar “Je t´aime moi non plus”. A desordem foi psicótica, todos em verborragia coletiva, rindo e ensaiando alguns passos de pilhéria. Lucas foi pro canto da parede e começou a simular um amasso como se estivesse com alguém prensado sob ele, esfregando os braços cruzados nas costas. Renato, um pouco mais desenvolto, arrebatou o gato do anfitrião e simulou algum tipo de cópula bestial cômica.

Verushka, de tanto rir, deixara sua garrafa de cerveja escorregar das mãos. O recipiente espatifou-se em zilhões de partículas. Ao que veio metade da festa ajudar a recolher, ela sentiu vertigem. Os cacos, espalhados pelo chão, revestido de cobertura plástica, em lascas finas e convexas, a fez lembrar ligeiramente de asas de baratas, quando morrem ou estão renovando e deixam seus recursos para trás. Não conseguiu recolher mais nada.

Ricardo postou-se à sua frente, no auxílio da ligeira catástrofe. Sorriu e cumprimentou, querendo dizer o previsível, que esse tipo de coisa simplesmente acontece.

Ele tinha olhos brilhantes, as madeixas em cachos, levemente desorganizadas devido à atividade boêmia que acontecia no recinto. Corpo esguio, charmoso, conforme movimentava seus ombros gerava uma cadência em profusão de músculos, delineados pela falta de carne e excesso de esforço. Suas mãos corriam ágeis, para que o jogo recomeçasse.

O vizinho tocou a campainha, o barulho estava em demasia, precisávamos sair do apartamento pra continuar a diversão. Embora estivesse preocupada por ser o estopim que fez o rabugento reclamar, assentiu com a idéia de ir pro clube que ficava ali perto nas redondezas do bairro.

Barulho e embriaguez, a combinação ideal pra se aproximar mais de Ricardo. “And if you can´t swing, you simply haaaave to…”. Era Mr. Paganini, com Ella Fitzgerald gritando freneticamente na finaleira daquela comemoração. Eles ensaiavam passos sem jeito e riam, riam, sem poder mais.

Era costume do bar encerrar a noite com grandes canções de jazz. Ricardo e Verushka acabaram por se encontrar no meio na multidão de amigos, Ela quase não o conhecia, ele era novo no grupo. E Ella introduziu um:

Like the beat beat beat of the tom-tom
When the jungle shadows fall
Like the tick tick tock of the stately clock
As it stands against the wall
Like the drip drip drip of the raindrops
When the summer shower is through
So a voice within me keeps repeating you, you, you
Night and day, you are the one…

“So a voice within me keeps repeating you, you, you…”. Verushska deslizava nos braços de Ricardo. Regozijava enquanto escutava Night and Day, olhava praqueles olhos de cegar qualquer um que preste atenção, e agradecia Cole Porter por escrever essas coisas sabendo que seriam tocadas no final da noite. E que o final da noite às vezes acabava bem e podia durar pra sempre.

Um comentário:

Dani Hyde disse...

só pra deixar registrado. são 4.49 a.m. e eu acabo de pisar numa barata de verdade e vou morrer em 57 segundos. adeus, blog.