sábado, julho 30

I slept with the devil (a dream)


Primeiro, eu ouvi a frase na voz de uma mulher, nada convencional aquela lá. Depois eu vi nos braços de outra, tatuagem, personalidade, e uma possível pureza nas camadas inferiores. O fato é que elas dormiram com ele, e essa noite, eu também.

(a partir daqui, um sonho vem à tona numa tentativa de reconstrução, não faz sentido procurar sentidos, considerar fatos, lendas ou dogmas religiosos, que seja lido com a mente aberta, um exercício pra alma)

Fantasy, abandoned by reason, produces impossible monsters; united with it, she is the mother of the arts and the origin of marvels. (Francisco de Goya)

Estávamos todos numa espécie de jardim de inverno, num shopping meio parque meio jockey clube, whatever. Uma parte dele era a céu aberto, as pessoas brincavam por ali, com as crianças, de dar forma às nuvens. Eu e muitos conhecidos. De repente, uma festa, creio. O certo é que a idéia de futuro é muito clara, tecnologia por toda parte, da máquina à filosofia.

Tinha esse amigo meu, desprovido de qualquer sinal de identificação. Alguém que eu amava incondicionalmente, ali estava o sentimento e a confiança “em pessoa”, sem necessidade real de um rosto. Vai ser o Mário (porque não conheço nenhum e assim mantenho a neutralidade.... não ria, é tudo muito sério nesse momento).

Mário e eu estávamos correndo no meio de uns arbustos, falando de literatura, recitando uns impropérios de Bocage e Sade, e gargalhando em agudos. O vento ressoava naquela concha que se forma quando as madeixas contornam o ouvido.

- Vê o orvalho?
- Mas se o sol já se impõe no centro!
- É orvalho, Dan. E vai chover.
- Oh sim! Sinto as gotinhas. Olha, a chuva chegando. Ali, o pretume das nuvens!

Em alguns segundos o “pretume” alcançava suas cabeças. Não era chuva, era uma tempestade sim; gafanhotos, pequenos animais mortos e muita poeira. Aquele cenário digno de um Goya rodeava as pessoas, absortas de um pânico paralisante, como numa pintura.

A nuvem passou, e todos, talvez por um instinto de sobrevivência primário, voltaram aos seus lugares, a continuar o que faziam antes. A subservir o próprio espetáculo. Menos eu e Mário.

- Lembra daquelas histórias da Internet?
- Que histórias, Mário?
- Que existe um link real com o “Underworld”, mundo de baixo, dos demônios. Mas que ele não fica exatamente abaixo de nós.
- Cara, eu acabei de assistir uma das trombetas gritando, e você vem me falar de casos da Internet?
- Dani, você sabe, aquele código de programação, a freqüência exata desse mundo paralelo.
- Aquilo era uma brincadeira. Acho que a situação é muito mais complicada.
- Uma coisa simples é muito mais difícil de ganhar credibilidade, quando tange aos medos da nossa espécie. Esses macacos.
- Macacos!? Ô, Mário! Virou anjo caído agora? Quer se juntar com aquela poeira nojenta pra dominar o mundo?

Todos conheciam os boatos de que, algumas companhias de aeronaves do planeta trabalhavam com descontos inimagináveis em alguns vôos clandestinos. Era difícil conseguir vagas, e havia aqueles termos de contratação. Quem voava nessas condições deveria concordar com os termos, e concordar em NÃO revelar o conteúdo destes a ninguém. O ato de infringir esta ordem custava a própria vida, ou não, não há como saber. As pessoas que espalharam os boatos são as mesmas que sumiram.

Eles têm alguma relação com o que Mario tentava refrescar na minha memória, e diretamente ligado àquela “nuvem preta”. O fato é que se dizia por aí, que essas aeronaves voavam num espaço sem impostos, e com um mínimo de gasto de combustível. Que elas voavam em outra quadratura dimensional. Em outras palavras, existia um atalho, e era pelo inferno.

O inferno aqui, divide o mesmo espaço. Não é embaixo, nem em cima, nem ao lado. Ele está nessas partículas invisíveis... que às vezes, não são tão invisíveis assim. Eu já tinha ouvido falar que as decolagens e aterrissagens das aeronaves causavam conflito entre os dois mundos, mas até então, nunca havia visto.

- Mário. Você já voou?
- Naqueles? Não.
- E não tem curiosidade?
- De andar de avião por LÁ? Não. Se quiser, eu vou conferir de perto.
- Será que é.... será que é errado? Querer saber como é?
- Dan! Acorda! Nós VIVEMOS em função dele! Nós DESFRUTAMOS dele! É praticamente um organismo vivo da nossa sociedade! O céu é uma pintura na igreja e material de estudo pros físicos e astrônomos. E esse outro lado, que nos rege, é nossa PÁTRIA! Não seja hipócrita como os outros.
- Inverteram-se os papéis, então?
- Muito antes dos traficantes fundarem a nova república do Rio de Janeiro.... – diz Mário, desdenhoso.
- Vamos lá na Cybertown então?
- Você quer usar a rede hoje mesmo?
- Quero que você faça comigo, esqueci os códigos.
- Mentirosa.

Mentirosa. Ele tem razão. Nunca entendi porque medo e curiosidade caminham juntos, e porque isso atinge até a mim. Isso é tão patético.

Bem, a Cybertown Culture era uma casa noturna, os piores djs da cidade desabavam por lá, não por causa da música, mas por causa da ansiedade descontrolada que causava no público. Eram os mais atormentados, inquietos, sedentos por “falar” tudo ao mesmo tempo [pense que no início do século XXI apenas NASCEU o culto aos DJs, e que isso vai piorar, e dominar a vida social nas décadas seguintes]. E cingia no ar, implodia meus tímpanos: Miles Davis, Ministry, Ella Fitzgerald, Syd Barret, David Bowie, Coltrane, Chet, Nine Inch Nails. Porque a loucura anda de mãos dadas com o Jazz e o Industrial, é uma constatação. Tinha a pista, iluminada com neon, de baixo pra cima num piso transparente de acrílico; as mesas todas comportavam um notebook hiperconectado; ainda existiam os ambientes ARCADE – pros gamers, o ELEVATION – uma seqüência de 6 elevadores panorâmicos, que só subiam e desciam num tubo, não existiam outros andares, mas quem estava do lado de fora não enxergava o interior deles, o que dá a eles uma utilidade imprescindível, e o “Livramento” - uma livraria daquelas, com almofadas e etceteras. Aquilo era um exagero, ninguém lia ali, só usavam aquele espaço pra se acomodar e usar suas droguinhas.

[mode monitor on]

PROMPT> HEY HEY
PROMPT> IT´S BETTER TO BURN OUT THAN TO FADE AWAY
PROMPT> (blá blá blá, isso envolvia algumas horas de citações de clichês “obscuros” em músicas, se o código tinha alguma razão de ser eu não lembro, mas faz sentido pensar que foi a porção SACANA que nos botou pra remexer o corpo, já viu algum padre dançar bem?)

INVITE ACCEPTED, PRESS THE FINAL KEY

PROMPT> CTRL + H + E + L

CONNECTION MADE, EXPECT CONTACT

!!!!! “SIEMPRE VIVA” – OUR BEST WISHES FOR YOU !!!!!


[mode monitor off]


Olhei pro Mário, sensação de tarefa cumprida. Olho pro salão, uma movimentação estranha, todos vão pro terraço. Fomos atrás. De novo aquela nebulosa feroz cheia de sujeira, insetos e o ar tomado pelo cheiro de enxofre. Só que diferente da primeira vez que vi, neste lugar de gente perdida, acontecia uma grande euforia, todos agiam de forma a exaltar o fenômeno. Assustador, mas excitante.

The day the world went away

Um dos DJs retardados botou o FRAGILE, do NIN pra tocar. Trancou a cabine que tinha formato de aquário, no meio da pista. E sumiu.

Um grupo de 4 pessoas veio então se aproximando de nós, se apresentaram, Jack, Jane, Adrian e Alexandra. Todos impecavelmente jovens, e de olhos brilhantes. A gente havia entendido tudo.

Começamos a conversar, falar do que havia acontecido um pouco antes, eles diziam que era normal, e ia acontecer cada vez mais. Deu-me um pouco de falta de ar, Jack estendeu um pacotinho com umas bolinhas, parecidas com aquelas bolinhas de homeopatia. A etiqueta dizia Amnofilina, era um remédio que eu tomei bastante quando criança, mas sabia que não era aquilo que estava contido no saquinho.

Jack era alto, de pele um pouco bronzeada, cabelos negros até a altura dos ombros, um pouco rebeldes, ondulados, mas moldavam perfeitamente seu rosto, lhe davam certa força, ele me seduziu no primeiro olhar. A sua mão era tão grande que o pacotinho ficava bem no centro do M, aquele M que temos nas mãos. Eu peguei umas 3 bolinhas e engoli. Mário fez o mesmo, era Alex que lhe estendia a droga.

Caminhamos juntos pelo Cybertown até chegar à ala dos Elevations, eu e Mário nos olhamos desconfiados, mas seguimos em frente. Na verdade, já nos encontrávamos meio entorpecidos, aquilo era uma espécie de calmante e começava a fazer efeito.

Adrian vai até o operador dos elevadores, Sr. Justine. Ele era uma espécie de celebridade do Cyber, os freqüentadores o cumprimentavam, zombavam da altura do quase-anão-careca-e-gordinho. Davam-lhe gorjetas igualmente gorduchas em algumas ocasiões especiais ou ilícitas. O que existia, era na verdade, uma grande movimentação nessa parte da casa noturna, que eu não havia me dado conta antes.

The Great Below

Adrian pede, com seu jeito marrento de viking, pra Justine fazer o procedimento. Entramos todos os 6 no elevador, o último do corredor. O velhinho simpático desejou bom divertimento e fechou a porta com umas vedações estranhas (parafusos e trincas, material todo de cobre).

O interior do “compartimento” era todo estofado e revestido em veludo cor de vinho. Todos se sentaram no chão, se acomodando de um jeito como se fôssemos dormir. De fato íamos, eu mal conseguia sustentar minha cabeça sobre os ombros. Recostei-me no peito de Jack, ele deu um sorriso e deslizou a mão no meu cabelo. À frente estava Mário, Jane e Alex sentaram-se uma de cada lado dele, fazendo mençõerio, Jane e Alex sentaram-se uma de cada lado dele, fazendo menço procedimento. egu rostoormal, e ia acontecer cada vez mais frs de "adocicar" aquela situação. As duas "skinny gals", se debruçando sobre meu amigo, deram início a uma seqüência de beijos e carícias. Fecho os olhos, apago.

Into the Void
"pictures in ma head, of the final destination(...)try to save myself but myself keep slipping away"

Desperto com um beijo de Jack, na testa. Ele desce as mãos do meu rosto até as minhas mãos, num deslize incompreensível. Levantamos-nos, e aquele elevador sumiu. Aqui, uma sala escura com alguns sofás antigos de bordel parisien. Atravessamos a sala e chegamos num cômodo, bem dizer, um quarto de bordel parisien. Jack some pela porta, como se tivesse sido sugado pelo vácuo.

Tem uma cômoda com espelho, defronte da cama.

Unpassant - eu numa camisola que devia ser só pra amenizar o vento mesmo, tamanha transparência.

De repente sinto uma energia tomar conta de mim, subindo dos pés para o resto do corpo.

Unpassant - Ele está atrás de mim.

Vira-me com força. Aquela coisa indefinida, disforme, com rabo, um corpo de morcego, do rosto eu não me lembro, sempre do rosto. Mas ele percebeu que eu gostei de Jack, e deu-me o rosto do meu pretendente naquele corpo estranho. Seguiu-se então o melhor coito da minha vida.

Starfuckers Inc.
"dont you dare call me a whore.."


Um beijo encharcado de desespero e lascívia, a impressão de que quanto mais sujo e degradante fosse o ato, mais fazia com que minha respiração ficasse ofegante, e mais ofegante, e mais e mais. Eu não estava preocupada com o fato de ser um demônio me comendo. A importância de compartilhar o prazer era tão maior do que todo e qualquer fato externo. Tinha paixão, tinha alma, isso que importava. Ele me subjugou completamente e me fodeu como se eu fosse o seu animal de estimação. Não era o sexo como nos vem à mente, era muito mais agressivo. Ele penetrava em mim por todos os meus poros, como se cada estocada tirasse um naco da minha integridade. Ele me queria nua de verdade. Eu o amei por isso.

Conversamos em algum momento de serenidade, perguntei se só poderia chegar lá à base de drogas, porque não gostava de usar drogas (passei a entender aquelas meninas semi-mortas zanzando pelo Cyber, com os olhos vidrados, skinnies). Ele me disse que, se eu fosse uma pessoa com certo controle dos estados inconscientes do corpo, eu conseguiria transpassar as barreiras do limbo e entrar sempre nessa freqüência, através dos sonhos.

Um sorriso. Não dá pra definir as camadas de bestialidade e beleza que coexistiam no mesmo ser, mas elas estavam lá, uma fração mais estarrecedora que a outra.

O sexo perdurou, por horas e horas de hedonismo sobrenatural. E então alguém me acordou.

As primeiras conclusões do dia foram: eu dormi com o diabo, e gostei. Vou escrever pra nunca me esquecer disso.

Um comentário:

guided by voices disse...

Massa.
Bom te ver escrevendo.